Tenho uma parceria desde o ano passado com um colega e amigo publicitário, cujo foco – eu, com a Verbo Mulher, ele com a Femme Comunicação – é a comunicação de gênero, mais especificamente comunicação e relacionamento com e para as mulheres. Partimos do princípio que apesar da emancipação feminina, conquistas pessoais, sucesso profissional, independência financeira, etc, e das pesquisas que são feitas para lançar e promover serviços e produtos para um público que tem as mulheres como público-alvo, ou como parte dele, o que se vê, na maioria das vezes, são comerciais repaginados do que se via nos “reclames” da década de 50. E isso se repete tanto em revistas quanto na televisão, em banners eletrônicos ou vídeos disponibilizados na web.
Em função disso, volta e meia nós analisamos alguns comercias novos (e/ou antigos) justamente para testar nossa teoria e podermos usarr, esse meu colega, a impressão que se tem é de que as agências pegam o briefing e “colam” nos comerciais, sem interpretar, sem trabalhar a ideia, e sem usar a linguagem adequada à realidade da mulher de hoje.
Eis que, no dia 18 de abril, ele me manda, por e-mail, o link do vídeo institucional da Procter & Gamble feito em homenagem ao Dia das Mães e tendo as Olimpíadas como mote, justamente para provocar uma nova análise e discussão. Assista ao vídeo primeiro; depois leia o resto deste artigo e pense a respeito.
O vídeo original: O melhor trabalho do mundo | P&G para os Jogos Olímpicos de London 2012
No e-mail de origem, ele cita a qualidade do trabalho do diretor Alejandro Gonzales Iñárritu que consegue, indubitavelmente, evocar a mais bela e tocante emoção nos corações de quem assiste o filme. Num segundo momento, ele questiona: “Que valores e papéis sociais da mulher são reforçados na propaganda a serviço de uma marca de produtos de limpeza, higiene e afins?”
Seguiu-se uma troca de e-mails com nossas impressões que mais tarde expandiu-se também pelo Facebook e contou com a colaboração de outras pessoas, entre amigos, colegas e familiares. Resumo aqui os principais pontos, que derivam do seguinte pensamento: “Muito bonito e emocionante. Tocante mesmo, se não usarmos o cérebro para analisar.”
1) Visão global ou globalizada da mulher/família – Ao considerarmos que se trata de uma empresa que está presente em todo o globo e em grande número de países, pode-se deduzir que as ideias apresentadas no vídeo “traduzem” valores, papéis, situações e realidades da mulher e das famílias em todo o mundo.
2) Modelo de maternidade – Ser mãe de um filho de sucesso (poderíamos questionar aqui o que é “sucesso”… ) é necessariamente ser alguém com dedicação total e exclusiva ao filho. Aí estão incluídos desde acordá-lo, preparar a sua alimentação, levá-lo até o transporte público ou levá-lo pessoalmente ao local de treinamento e acompanhar os treinos. Também faz parte lavar-lhe a roupa, arrumar a cama, lavar a louça, entre outros afazeres, sem contar com o apoio ou parceria de outros membros da família, seja do próprio filho, do pai, ou dos outros filhos, bem como abdicando de ter uma carreira ou simplesmente de trabalhar para ganhar ou contribuir com o sustento familiar.
3) Exclusão masculina – Ainda que a homenagem seja para as mães, excluir os homens da vida delas e dos próprios filhos, em pleno século 21, é reforçar um comportamento que vem sendo combatido desde meados do século passado, pelo menos, não só pelas feministas ou pelos movimentos de emancipação da mulher, mas pelos próprios homens que lutam para ter o direito de participar da vida dos filhos, inclusive de guarda compartilhada em situações de divórcio. Isso sem falar do crescente número de casais homossexuais masculinos que têm tido reconhecido o direito de terem filhos.
4) Segmentação étnica – É muito provável que a intenção tenha sido oposta, mas o que se vê no vídeo não é a diversidade étnica, mas a segmentação étnica. Casais negros com filho negro, casais brancos com filho branco, casais asiáticos com filhos asiáticos… É esta a realidade do nosso mundo atualmente? Todos são de uma única etnia no mundo civilizado de hoje?
5) Vencedores X Perdedores – De acordo com o vídeo, não há como negar: todos os filhos que tiveram essas mães abnegadas e 100% dedicadas a eles saíram-se vencedores, para a alegria dela e felicidade do pai, que, sim, no dia da competição final estava presente (talvez tenha pedido licença no trabalho, afinal, ele trabalha)… E o que acontece quando o filho não vence? Como a perda e o próprio filho são aceitos e tratados? Como esse filho “perdedor” se sente já que a alegria e felicidade são as recompensas proporcionadas por aqueles que vencem? Como fica a máxima que tangencia as grandes competições e diz “O importante é participar”? É uma falácia?
Isso me faz lembrar um post que andou pelo Facebook recentemente, em que foi publicada a foto de uma faixa mandada fazer pelos familiares de uma vestibulanda que não passou nos concursos dos quais participou. Com família como essa, quem precisa de inimigos?
Afinal, quais valores estão sendo apresentados e disseminados pela empresa além de o Dia das Mães ser uma data a ser comemorada e as Olimpíadas serem um evento internacional e inter-racial (mas sem mestiçagem)?
Agora, depois de pensar sobre tudo isso, assista novamente ao vídeo e preste atenção aos detalhes, às mensagens subliminares. Você que é mulher ou homem, mestiço ou não, mãe ou não, filho ou filha, com certeza, e que às vezes vence e às vezes perde, como se vê nesse cenário apresentado no filme?
[youtube http://www.youtube.com/watch?v=RoQ1iYREvgI&version=3&hl=pt_BR&rel=0]
Será que profissionais de Relações Públicas tiveram a oportunidade de participar do planejamento, execução, avaliação e liberação dessa propaganda instituicional que, lembre-se, reproduz – ou pelo menos deveria reproduzir – os valores, a filosofia, as políticas, a imagem e a reputação da organização?
Deixo uma última frase, de autoria do psicólogo Mario Costa, professor do meu colega que participou do debate, cujo pensamento nos faz avaliar ainda mais situações como essa:
“Há propagandas que vendem sabonete; há propagandas que vendem um modo de ser no mundo. Ideologia.”
PS: Sou mulher, sou mãe de quatro filhas, sou esposa, sou filha, irmã, amiga, colega, sou Relações Públicas. Para mim, ser Relações Públicas é a melhor profissão e o melhor trabalho do mundo e uma parte fundamental e valiosa de mim como pessoa e como ser produtivo e participativo na sociedade. Ser mãe não é um trabalho nem uma profissão, é uma outra parte importante da minha vida como pessoa que jamais me fez abrir mão da faceta profissional. E essa é a realidade de milhões de mulheres mundo a fora, seja qual seja a ocupação delas, de garis ou camponesas a diretoras de empresas e presidentes da república.
Ana Manssour, excelente reflexão, eu diria. Por meio do seu texto pode traduzir um dos motivos da minha escolha pelas Relações Públicas: olhar crítico e diferenciado perante ao olhar genérico.
Obrigada pelo cometário!
Mayra Cive